Descontinuidades e rupturas na trajetória de uma professora


“O passado não é o antecedente do
presente é a sua fonte” (Bosi)

Em uma pequena cidade, de nome Diamantina, cidade entre serras, ‘na encosta do monte, com mil casas em grupozinhos, alvas como cordeirinhos’, onde nasceu o autor desse verso, também eu nasci.

E foi, nesta cidade pequena do interior das Minas, ainda criança aprendi que, subindo em árvores altas, como o abacateiro que tinha no quintal de casa, podia ver outros espaços, vislumbrar talvez outros mundos que não se descortinavam em um primeiro olhar. Subia no pé de pitanga, e ficava a olhar o céu, descobrindo nas formas que o vento imprimia às nuvens, tantas coisas novas; exercitava o olhar, sensibilizava-o, fazendo brotar em mim amigos imaginários, que passavam as tardes da infância comigo, na solidão de menina tímida e quieta que tinha no espaço do quintal o espaço do mundo.

Como filha mais nova de uma família de mais seis irmãos, ouvia a voz de minha mãe cantando, na labuta diária, cantos de trabalho, há muito esquecidos.

À noite, ao pé do fogão a lenha, ouvia maravilhada histórias de minha mãe. Ela nos contava como se dera a sua mudança de Juazeiro, na Bahia, para Belo Horizonte e como ela, as irmãs e a mãe dela, minha avó, constituíam uma família em que as mulheres se tornaram a referência, não porque eram feministas ou porque tinham (que), ou queriam lutar por seus direitos, mas lutavam como forma de sobrevivência... a vida se lhes impusera desde cedo, como matéria própria e inerente aos seus seres a luta diária, o trabalho desde muito cedo.

Minha mãe, quando criança, sonhara em ser professora, mas o sonho acalentado, não ocorreria, porque se lhe impusera desde criança a labuta diária; logo, logo meio menina e quase uma mulher se tornaria ‘lanterninha’ de cinema em Belo Horizonte. Esse emprego lhe formaria a habilidade de contar histórias, de forma a nos prender amigavelmente naquela cozinha tão pequena, onde ouvíamos maravilhados a sua descida pelo Rio São Francisco, a chegada daquela família predominantemente de mulheres, na cidade de Pirapora, depois São Paulo, e de novo Minas, agora para capital, Belo Horizonte.

Nessas histórias, conheceríamos o vapor “Wenceslau Brás” o “Prudente”, mas conheceríamos também a história que o vento não levaria (O vento levou- filme de 1939) e assim como minha mãe, diríamos que Clarke Gable e Vivien Leigh eram o casal mais lindo do mundo e indubitavelmente Scarllet O’Hara a mulher mais corajosa, bela e amada de todo o planeta.

Nessas histórias contadas/ouvidas, eu, menina, descobri o amor pela leitura. Entrei para a escola decidida a aprender a ler o mais cedo possível... eu queria aprender a ler para ‘conhecer novas palavras e tornar outras mais belas’, como afirmou o poeta.

Agora, depois de alfabetizada, já não subia no abacateiro sozinha, levava comigo Júlio Verne, As mil e uma noites... e como uma Sherazade perdia-me nos castelos, lutava com dragões e encantava e desencantava príncipes e princesas. Tornava-me rainha, tornava-me moura... heroína e vilã... pouco importava... familiarizava-me com outras palavras e, embora nem sempre elas se tornassem mais belas, conduziam-me para outros mundos, tecendo outros bordados, costurando sonhos.

Entretanto, é preciso abreviar a fala que já se vai longa sobre o papel... conheci novas palavras, tantas e tantas... e, aos 17 anos me tornei professora, o sonho de minha mãe se realizaria na filha... fui normalista... e como minha mãe, a vida me empurrava para o trabalho. Logo, logo tornei-me professora da educação infantil, foi ali que, de novo, nasci...

Se nascera uma primeira vez, em Diamantina, nasci pela segunda vez quando descobri a sala de aula. Vieram então os outros processos de formação: a graduação em Letras, outras descobertas... Marx, Bachelard, Kuhn... rupturas e descontinuidades.

Para Khun, a história dos conhecimentos científicos não é um processo cumulativo; Bachelard fala das descontinuidades da história das ciências e das rupturas epistemológicas; Kuhn fala do desenvolvimento não-cumulativo das ciências e das crises e revoluções científicas. “Todo progresso real no pensamento científico requer uma conversão”, afirma Bachelard. (1971: 144.). E, para Kuhn (1975: 255), o desenvolvimento científico é “uma sucessão de períodos ligados à tradição e pontuados por rupturas não-cumulativas”. São revoluções científicas em que um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior (idem); mas é novamente Bachelard (1971:145) quem reafirma: “a experiência nova diz não à experiência antiga”.

Mas como descobrir e relacionar a minha vida às ‘minhas’ novas descobertas? Como Kuhn, Marx, Bachelard, constituiriam em mim outras reflexões teóricas que provocariam rupturas, descontinuidades, continuidades na trajetória delineada até então? De fato, as novas experiências precisariam dizer não às anteriores? Mas como?

À época, não tinha a dimensão das mudanças pelas quais eu passaria, mas se acreditava que Deus tinha o risco, fui descobrindo assim como o personagem de Autran Dourado que o ‘bordado deveria ser meu’. Opções feitas com maior ou menor consciência e clareza, conduziam-me pelos caminhos de uma graduação que faria em mim tantas mudanças, ao mesmo tempo em que me certificaria de que havia muito a percorrer.

Como o ‘caminho se faz ao caminhar’ enveredei-me em descobertas e estudos que me apresentaram e me fizeram ler Freire e Brandão. Conheci a educação popular e, se um dia quis tornar as palavras mais belas, naquele momento, as palavras tornaram-se libertação e redescobri de forma muito significativa o poder social e a importância da alfabetização e da leitura. Graduei-me em Letras. Caminho natural, a pós-graduação em Língua Portuguesa, feita na PUC-MG (o antigo PREPES) realizado nos períodos de férias escolares, trouxeram novamente livros à mancheia que me fariam descobrir, como professora de Língua Portuguesa e Literatura as vozes silenciadas e/ou as vozes empoderadas pelo valor atribuído não a homens e mulheres por assim o serem, mas pelo lugar social e econômico por eles(as) ocupados. Nessa caminhada, Maurizzio Gnerre (Linguagem e Poder)andou ao meu lado.

Foi nessa época, pouco antes, pouco depois que apareceu o Pablo! Escolhi este nome pelo seu significado: “Pablo significa pequenino”. Meu filho nasceria e eu nasceria novamente, junto com ele. Ser mãe é nascer de novo. É reaprender tudo, ressignificando o mundo e ressignificando o lugar da mulher no mundo. Este sonho tão doce (o de ser mãe) me fez descobrir uma força que nem mesmo eu sabia que havia em mim. Mas se a força era imensa a ternura sobrepujava e me colocava diante do mundo com outras questões: mulher, mãe, trabalhadora.

A vida novamente se colocava a partir de rupturas e descontinuidades, nada é linear... os estudos teriam que esperar, afinal, o filho, amado demais, exigia-me atenção e cuidados, e, ainda o trabalho intenso em Instituições de ensino em Diamantina: Escola Estadual Professor Leopoldo Miranda, Escola Estadual Professor Gabriel Mandacaru, Colégio Tiradentes e a Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina.

Hoje, olho para trás e tenho certeza, assim como o personagem de Autran Dourado (já citado) o risco é de Deus, mas cabia a mim o bordado. Enveredei-me no caminho de formação de professores. E na FAFIDIA (Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina) trabalhei por todo o Vale do Jequitinhonha. Coordenei um projeto de Formação de professores no formato modular/presencial e descentralizado. Eram os Polos: Araçuaí, Rio Vermelho, Itamarandiba, Minas Novas, Conceição do Mato Dentro, dentre outras cidades. As aulas dos cursos de Pedagogia, Letras ocorriam nos meses de janeiro e julho de cada ano e, durante o semestre existiam encontros e orientações de leituras e trabalhos para os alunos desenvolverem.

Quantas pessoas e realidades inimagináveis conheci e reconheci naqueles estudantes, em sua maioria mulheres, mães, trabalhadoras do ensino. Cada uma daquelas mulheres, mães, estudantes eram parte de mim e constituíam em mim e nelas outras formas de ver o mundo. Identidades que se construíam, reconstruíam, rompiam-se, descontinuavam-se... e no bojo desses processos de formação também eu, formava-me, ressignificando as minhas trajetórias pessoais e profissionais. Em 2006, veio a opção pelo Mestrado em Educação. Descobri novamente outros autores, novas possibilidades. O tema foi "A disciplina Língua Portuguesa no currículo da Escola Normal Oficial de Diamantina, no período de 1880-1889: Legislação, Política e História"; a escola onde eu estudara e me tornara normalista, era, agora, meu objeto de estudo. Queria entender os percursos formativos das Normalistas do final do século XIX e a construção da disciplina Língua Portuguesa, em um período em que o Latim ainda se constituía como língua de prestígio e de reconhecimento de uma elite “culta” e abastada.

Em 2009, fruto da aprovação de um projeto em educação do campo, escrito em 2008, trabalhei na UFVJM como professora substituta no Curso de Formação de professores para a Educação do Campo. Experiência maravilhosa, que ajudaria a definir a opção teórica para o processo de doutoramento pela UFMG, no futuro ano de 2015, com a tese: “Escritas de estudantes da Licenciatura em Educação do Campo da UFVJM: um estudo na perspectiva das Representações Sociais em Movimento”. Nesse ínterim, entretanto, surgiriam os Institutos Federais e, em 2010 fui aprovada em concurso para o Campus Araçuaí. Lá, trabalhei como professora e logo depois experienciei o lugar de Coordenação de Ensino.

Experiência rica, povoada de conflitos, mas desenvolvida com competência e muitos, muitos diálogos. Aprendi muito em Araçuaí, mas acima de tudo fui muito feliz (e continuo sendo). O ano agora é 2019. Concluído o processo de doutoramento, pleiteio a vaga para voltar para minha cidade Diamantina. O Edital nº 89 é aberto e volto para minha cidade natal. O campus Diamantina tem proporcionado um conjunto de aprendizagens, rupturas, continuidades e descontinuidades. Outros paradigmas, outras epistemes...mudanças necessárias em qualquer tempo e lugar.

A vida me ensinou a importância de metamorfosear pessoas, processos, lugares, vidas; e como símbolo de mudanças escolhi a BORBOLETA, que, no silêncio e solidão do casulo evidencia a importância das metamorfoses. Mudanças que trazem o novo na delicadeza das asas coloridas e felizes.

Depois dessa longa trajetória na sala de aula e gestão educacional, hoje, 2024, coloco meu nome à disposição deste Campus para apreciação da comunidade acadêmica para exercer o cargo de Diretora Geral. O sonho mais uma vez se faz presente e o objetivo agora é contribuir para que a educação continue transformando pessoas, de modo a torná-las mais felizes, críticas e criativas. Se a educação contribuiu, sobremaneira, para que eu me descobrisse e pudesse bordar do meu jeito o bordado da vida, quero que outras e outros também o façam.

Um grande abraço,

Elizabeth Moreira Gomes
#MudarParaAvançar

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